Ética e redução de Danos
Redução de danos (RD): informações básicas.
A redução de danos age com uma proposta diferente da maioria das abordagens do uso e abuso de drogas que costumam manter o uso de drogas (lícitas e ilícitas) no lugar de marginalização proposto pelas formações discursivas hegemônicas. Enquanto algumas abordagens já exigem abstinência antes mesmo de começar o tratamento, a redução de danos se propõe antes a escutar o usuário e o uso que ele faz das drogas e, partindo disso, agir reduzindo tanto quanto possível os eventuais prejuízos que vem sendo acarretados a esse indivíduo pelo uso indevido das drogas, bem como orientá-lo no sentido de fazer um uso menos prejudicial. Desse modo, a RD não coloca os usuários em nenhum outro lugar senão no de cidadãos com direito à vida e à saúde, e estimula nessas pessoas práticas de cuidado de si para que possam efetivamente tomar seus lugares no tecido social independentemente de uma adequação à moral hegemônica abstinente. Dito de outro modo, a RD age no sentido de transformar a realidade do usuário de drogas de uma situação de margem, marcada por estigmas sociais que o prendem a um lugar de aberrância, de desviante, sujo, doente e criminoso para um lugar de cidadão com direitos, considerando-o em sua singularidade e valorizando suas escolhas.

Uma breve história da redução de danos:
A história da Redução de Danos que nos conta Caroline Brasil (BRASIL, 2003) tem como marco inicial uma decisão tomada na Inglaterra, em 1926, de utilizar opiáceos para auxiliar no tratamento de dependentes de ópio, sendo este o primeiro passo na direção da construção de uma estratégia de redução de danos. Primeiro passo porque, pela primeira vez na história moderna se vê a dependência de drogas desde uma outra perspectiva que trata a dependência como problemática complexa devendo ser abordada através de estratégias múltiplas e singulares. Muito tempo depois, nos anos 80 é que vai se retomar o movimento de revisão na maneira de enfrentar o uso de drogas. É na Holanda, com o problema da transmissão de doenças como a Hepatite B e a AIDS através de seringas compartilhadas por usuários de drogas injetáveis, que se forma uma estratégia já melhor sistematizada de redução de danos, agora através da instrução dos usuários de drogas de como se prevenir de doenças ao usar drogas e da troca de seringas apoiada pelo governo. O primeiro programa de troca de seringas do governo holandês foi implantado em 1984, e logo depois se espalhou pelo resto do continente europeu. Desde um meio de controlar epidemias até chegar a ser uma forma de evidenciar a demanda de um grupo até então marginalizado - o dos usuários de drogas, principalmente injetáveis - a RD evoluiu através de uma intensificação da força política envolvida no combate ao modelo higienista vigente, propiciada pelo espaço aberto aos usuários para se organizar e reivindicar seus direitos. A força política da RD vai se intensificando ainda mais ao longo dos anos 90 com as conferências mundiais de Redutores de Danos, realizadas anualmente em diversos países.
No Brasil, em 1998, foi criada a secretaria nacional anti-drogas (SENAD), ligada diretamente ao gabinete militar e adotando uma abordagem baseada na guerra às drogas proposta pelo governo estadunidense em 1989, em uma convenção sobre entorpecentes proposta pela ONU. Desde antes mesmo da criação da SENAD, a redução de danos no Brasil não tem muito espaço frente à política orientada para a abstinência como único caminho e objetivando a erradicação das drogas, no entanto alguns setores, como a coordenação nacional DST/AIDS já buscam uma organização maior a fim de implantar programas de RD no país desde 1989, mas é só em 1995, em Salvador (BA) que é efetivamente implantado o primeiro Programa de Redução de Danos (PRD) do país, que passa então a realizar a troca de seringas para usuários de drogas injetáveis. A partir daí a RD vai crescendo com o apoio do Ministério da Saúde e pela crescente organização dos redutores de danos e usuários de drogas em movimentos políticos até chegar hoje a um número próximo a 200 PRDs, e constituição das Associações Municipais e Estaduais de Redutores de Danos, além da constituição da formação da ABORDA (Associação Brasileira de Redutores de Danos) e a REDUC (Redução de Danos) que vêm intervindo intensamente no sentido de , a partir do fortalecimento do protagonismo entre os usuários de drogas, construir uma força política capaz de enfrentar os saberes constituídos, alterando a dinânmica das redes de poder e assim também a realidade dos usuários. Nos últimos anos a força de resistência política da RD vem aparecendo nas modificações à Lei brasileira de drogas, que caminha para uma flexibilização cada vez maior e progressivo distanciamento do moralismo, com uma maior consideração pelo direito de escolha do cidadão.

Uso dependente de drogas e a redução de danos:
Enquanto em usuários não dependentes de drogas a RD vai agir principalmente no sentido de evidenciar os riscos presentes no uso e orientar o usuário para minimizar tanto os danos físicos quanto os danos sociais relacionados ao uso de drogas, em usuários dependentes a situação torna-se mais complicada: trata-se de usuários que não têm controle sobre seu uso da substância, portanto, a ação da RD deve ser orientada no sentido de restabelecer o controle do sujeito sobre seu uso de drogas, bem como auxiliar na formulação de uma eventual demanda de tratamento, porém sem nunca deixar de tomar como base uma escuta livre de julgamentos – tanto quanto possível – da demanda do sujeito, característica fundante da RD.

Psicólogos e RD, aspectos éticos e legais:
O psicólogo, como profissional da saúde deve planejar a sua intervenção em concordância com os princípios e diretrizes do SUS (BRASIL, 1990) que regulamenta a atenção à saúde no Brasil. Essa lei garante que todo profissional da saúde deve executar a sua prática observando alguns princípios fundamentais, dentre os quais destacamos o da universalidade do acesso à saúde, que garante a todos os cidadãos brasileiros o direito à um programa de saúde. Além da universalidade, destacamos também os princípios de eqüidade e integralidade que garantem que a promoção de saúde deve considerar todos os cidadãos em sua singularidade, respeitando-se as inclinações e diferenças entre cada um. Além disso, o código de ética profissional do psicólogo prevê, em seus princípios fundamentais, que o psicólogo deve promover a saúde respeitando a liberdade, a dignidade e a integridade do ser humano, contribuindo assim para eliminar a negligência , a discriminação, a exploração, a crueldade e a opressão. Desse modo, não há nenhuma discrepância entre a observância à lei da saúde no Brasil e a prática do psicólogo pautada nos moldes da RD, visto que a redução de danos pode ser vista como uma postura ética que visa a um empoderamento dos sujeitos e que pretende possibilitar uma reflexão a respeito dos jogos de verdade presentes nas estruturas de poder formadas na sociedade, ao invés de simples aceitação de um poder imposto hierarquicamente. Apesar disso, ainda há se encontra algumas dificuldades na prática dos redutores de danos devido à incoerência entre a forma como o uso de drogas é visto pelo código civil brasileiro (BRASIL, 2006) e a postura ética dos profissionais, em observância aos princípios do SUS. A lei de drogas, no artigo 20, prevê um espaço para a RD como prática de atenção aos usuários de drogas, porém concordância dessa mesma lei com o discurso jurídico-moral de abstinência, explicitada no artigo 33, que trata dos crimes associados às drogas, torna mais difícil a redução dos danos sociais associados ao uso de drogas, já que continua a tratar o usuário como delinqüente, assim abrindo caminho para a marginalização desse mesmo. Essas dificuldades têm ainda de ser trabalhadas e superadas, e o trabalho dos redutores de danos também é orientado nesse sentido, ao passo que estimula nos usuários de drogas a conscientização de seu papel de cidadãos brasileiros com direitos, e buscando uma mobilização e melhor organização deles, tenta possibilitar que seus interesses sejam representados e ouvidos nas instâncias decisórias do país